Esta é a tragédia da Liberdade!

Esta é a tragédia da Liberdade! (1)
por Odete Santos
(revisitando o poema Catarina Eufémia de Sofia de Melo Breyner Andersen)
 


No dia 19 de Maio de 1954 foi assassinada a tiros da pistola metralhadora do tenente Carrajola da GNR, a ceifeira Catarina Eufémia que com algumas companheiras pretendia demover um rancho de trabalhadores rurais de trabalhar, convencendo-os a aderir à luta por salário menos baixo.

Segundo a versão oficial a morte aconteceu por mero acaso e deveu-se ao automatismo da arma que o Carrajola encostara ao corpo de Catarina disparando em seguida, depois de ter afastado o corpo do filho que ela trazia ao colo.

Esta era a Justiça do velho abutre (para usar uma expressão de Sofia de Melo Breyner Andersen referindo-se a Salazar) que «é sábio e alisa as suas penas/ A podridão lhe agrada e seus discursos/ Têm o dom de tornar as almas mais pequenas».

O crime cometido pelo Carrajola ficou impune. O tenente da GNR nunca foi julgado. E, por isso, sobre aquele dia 19 de Maio de 1954 disse a poeta Sofia terminando o seu belíssimo poema sobre Catarina Eufémia:

Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste (verso 15 do poema)
E a busca da justiça continua (verso 16)



Antígona


Sofia de Melo Breyner estabelece um paralelismo entre a história de Antígona (da mitologia grega) e a vida real de Catarina Eufémia.

Antígona, filha do incesto de Édipo com Jocasta, mãe deste, tem mais dois irmãos (Polinices e Etéocles) e uma irmã Isménia.

Os dois irmãos envolvem-se numa luta fratricida pelo poder em Tebas, morrendo os dois. O rei de Tebas, Creonte, manda que Etéocles seja sepultado, mas proíbe que sejam feitos funerais a Polinices sob pena de morte. Porque, segundo a crença dos gregos, quem não fosse enterrado vaguearia 100 anos sem poder passar para o reino dos mortos, Antígona, que quer dar sepultura a seu irmão, rouba o corpo e tenta enterrá-lo com as próprias mãos, sendo presa.

Ainda que longínqua, não pode deixar de estabelecer-se uma relação com o facto de o fascismo, para impedir um levantamento popular, ter sepultado Catarina no cemitério de Quintos, desviando o funeral de Baleizão.



Catarina, mulher guerreira


Membro do Comité Local do PCP de Baleizão segundo o camarada António Gervásio, Catarina Eufémia desafia o fascismo ao encabeçar um grupo de trabalhadoras rurais alentejanas.

Catarina é mulher combatente, é a própria personificação da Liberdade quando enfrenta o tenente Carrajola. Ela é o próprio Alentejo em luta contra o fascismo. Ela é o próprio País em luta contra o velho abutre.

Dela diria Sofia:

Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro
Porque eras a mulher e não somente a fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
(versos 10 a 14 do poema)

Catarina, mulher de coragem, que não recua. Catarina que se levanta da sua animalidade de fêmea, derramando o seu sangue duplamente purificado, porque é o sangue de uma combatente e o sangue do filho que trazia no ventre.



Catarina versus Isménia


Para compreendermos os versos 5 a 9 do poema recorremos de novo à história de Antígona que tinha uma irmã de nome Isménia:

«Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos»


Isménia na tragédia grega, representando a generalidade das mulheres, considera um acto de loucura a rebeldia de Antígona. Isménia representa as mulheres que estão sempre atrás dos maridos. As que passam a sua estreita vida a cozinhar intrigas usando o tradicional método das mulheres que não usam de rectidão e de frontalidade. Que recuam ao contrário de Catarina. Que não lutam contra a injustiça.

Antígona/Catarina é o contrário do modelo feminino muito habituado a manobras e intrigas, resultado da vida na estreiteza do seu lar. A resistência e luta de Catarina vão muito para além da necessidade de prestação de serviços fúnebres aos mortos.

E porque Catarina é o contrário do arquétipo feminino dos tempos do fascismo, porque Catarina luta pelo pão e pela paz, ela é sacrificada no altar da Liberdade.

É por isso que a tragédia de Catarina é, como a tragédia de Antígona, a tragédia da Liberdade!



A conquista da Liberdade e da Justiça



Nos primeiros quatro versos do poema, Sofia medita sobre a concepção de Justiça dos gregos, retomando esta reflexão, como vimos no verso final (E a busca da Justiça continua):

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente


Na verdade, para os gregos o ideal da Justiça confundia-se com a própria alma. Daí que, normalmente se desse como assente a existência de uma lei divina, imutável.

Apesar da filosofia de um pré-socrático, Heráclito, considerado o pai da dialéctica, segundo o qual nada é imutável – Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio. E ainda segundo o qual existe uma oposição entre os contrários que conduz à harmonia. Sendo a justiça discórdia e sucedendo-se todas as coisas em consequência da discórdia e da necessidade.

A heroicidade de Catarina (uma das poucas heroínas mulheres da História de Portugal) constitui um marco importante para a construção de uma ideia da Justica, edificada através dos tempos com sangue, suor e lágrimas do Povo de que Catarina é legítima representante.

Porque a ideia da Justiça muda através dos tempos.

E é por isso que, na esteira de Catarina, continuamos em busca da Justiça.


1 Este título foi extraído de uma das falas de um elemento do coro (um Velho) da tragédia Antígona escrita e encenada por António Pedro para o TEP (Teatro Experimental do Porto)
 
 
 
Fonte: Avante
 

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