O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA FILOSOFIA

O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA FILOSOFIA

«A religião é a arte de atordoar os homens com o fanatismo - escreveu então Holbach - para os impedir de compreenderem os males que descarregam sobre eles neste mundo os que os governam.» 
 
"o marxismo equipara o espírito «em si» ao espírito humano, e define o que existe fora deste espírito como natureza, como matéria. O marxismo, finalmente, mostra também as raízes sociais do aparecimento e da consolidação da ideia ilusória da existência de um espírito, ou de um Deus, supra-humano, sobrenatural e criador do mundo. "
 


Friedrich Engels fez notar que há um problema da resolução do qual dependem todas as outras respostas filosóficas: «O grande problema fundamental de toda a filosofia, em especial da filosofia moderna, é o da relação entre o pensamento e a existência [...], a relação do espírito com a natureza [...], o problema: qual existe primeiro, o espírito ou a natureza? [...] Consoante era dada uma ou outra resposta a este problema, os filósofos dividiram-se em dois grandes campos. Os que afirmavam que o espírito era primordial face á natureza, e portanto aceitavam, em última instancia, esta ou aquela criação do mundo [...] constituíram o campo do idealismo. Os outros, que consideravam a natureza primordial, pertencem às várias escolas do materialismo.»

Com a ajuda deste problema, e da resposta que se lhe dá, podemos orientar-nos na filosofia.

Mas o nosso jovem amigo objectará, duvidoso: «Mas todos os filósofos estão de acordo com esta formulação do problema fundamental?»

É claro que não. Do lado da religião surge o protesto.

O que é que os representantes da teologia têm a objectar a Engels?

Dizem-nos: podemos concordar que fora do espírito humano, e independente dele, existe um mundo, contanto que se reconheça que esse mundo surgiu por um acto de criação de um espírito superior ao homem. Segundo os teólogos, é de criticar Engels por só admitir a existência de um espírito humano, por não considerar a existência de um espírito extraterreno. 

O padre jesuíta Wetter afirma ser absolutamente possível reconhecer a existência do sobrenatural, que é independente da consciência que a conhece, e por outro lado insistir em que «um espírito sobrenatural criou a natureza».

Seria, portanto, uma «trapaça» de Engels considerar tudo o que existe fora da consciência humana, toda a realidade objectiva, como natureza, como matéria. Pois se fora desta consciência humana ainda existe um espírito objectivo que transcende o homem, então a realidade objectiva não é só de ordem material.

A existir este espírito, Wetter teria razão. Mas há um princípio constante da lógica que determina: não é quem contesta a existência de uma coisa, mas quem a afirma, que tem de a provar. Friedrich Engels e todos os outros filósofos materialistas contestam a existência de um espírito sobrenatural. São as religiões que afirmam que ele existe. São, portanto, os que as seguem quem tem de provar que, de facto, existe um espírito sobrenatural. Refugiar-se em «suposições» e «insistir» nelas não nos diz nada, não prova nada. A nossa fantasia pode, com efeito, «supor» tudo e mais alguma coisa, e «insistir» na sua existência. Mas a verdade é que, por eu supor uma coisa qualquer, essa coisa qualquer não passa a existir realmente. Trata-se, antes de mais, de saber se está provada, ou se é possível provar, a existência de um espírito objectivo supra-humano. E a isto acresce que o próprio Wetter, falando das modernas ciências da natureza, teve de admitir que estas, «sobre a questão decisiva da existência, para além da matéria, de realidades não materiais, não nos dizem nada».


HAVERÁ UM ESPÍRITO SUPERIOR AO HOMEM? 

Noutro dos seus livros Wetter também nos diz porque é que não é possível provar cientificamente que exista uma consciência supra-humana: uma tal consciência, um tal espírito, teria de ser uma essência eterna. Mas que significa «eterna»? Todas as tentativas de explicação da palavra têm de partir de processos muito terrenos, muito naturais, do aparecimento e do desaparecimento de coisas e fenómenos isolados. 

Considerando a existência destas coisas e destes fenómenos do nosso mundo, observando o seu devir e desaparecimento incessantes, e relacionando tudo isto com a lei provada e irrefutável da conservação da massa e da energia (isto é, a matéria não se cria nem se destrói), podemos afirmar, com a certeza dada pela ciência, que o mundo, onde tudo devém e desaparece, é eterno. 

O único caso em que podemos dizer que alguma coisa é eterna é o do mundo, da natureza, mas não o de um espírito extraterreno. 

É uma situação delicada para a religião. Que fazer? Os teólogos respondem: «só podemos entender o modo da existência divina pela negação(!) do modo correspondente da existência das criaturas». É o que se lê no Dicionário Filosófico da editora católica Herder Verlag (1957, p. 143). Wetter esclarece esta afirmação noutro contexto nos termos seguintes: «A eternidade divina é um modo de existência supratemporal [...] que nada tem a ver [!] com a duração e sequência temporal de momentos, com o aparecer e desaparecer.»

A isto chama-se definir uma coisa pelo que ela não é. A lógica classifica esta definição negativa como um dos sofismas clássicos. Se eu tiver de dizer o que é um cão a alguém que nunca viu um cão, que nunca ouviu falar de semelhante animal, dizer que um cão não é um gato, nem um cavalo, nem um porco, é o mesmo que nada dizer sobre o que é um cão. Do mesmo modo os teólogos: até hoje só nos disseram o que o «modo de existência divina» não é, como a eternidade não é. Wetter diz mesmo que Deus não é só o nada temporal, mas também o nada espacial. «É um "ponto focal" [...], simples e inextenso, mas que não representa nada de vazio e carente de existência.»

Compreender como é que existe uma coisa que não existe no espaço e no tempo, compreender como é que uma coisa que não tem extensão não é vazia - quando só se pode dizer tudo aquilo que ela não é -, não é uma questão do saber, nem do pensamento lógico, nem da comprovação científica; é uma questão puramente de fé. A ciência, a razão e a lógica não podem provar a existência de um espírito sobrenatural, a existência de Deus. 


De resto, já Holbach, um dos grandes pensadores que esclareceram o povo no tempo em que se preparava a Grande Revolução Francesa de 1789, crítica os teólogos por estes sofismas. 

Escreveu ele: «[...] o ser superior acrescentado à natureza é impensável e contraria os nossos conceitos gerais [...]. Podemos acreditar na existência de um ser sobre o qual nada podemos dizer e que representa uma acumulação de negações de tudo aquilo que sabemos?»

O pensamento científico só infere das explicações teológicas que Deus, ou o espírito extraterreno, é o nada espácio-temporal. E a existência do que não existe no espaço e no tempo não pode, de facto, ser provada. Wetter ainda acrescenta: «é necessário [...] um tal "ponto focal"». Para quem é que é «necessário» um tal «ponto focal?» Os teólogos afirmam que as pessoas religiosas precisam de um tal espírito extraterreno e supra-humano, de Deus. Mas de um ponto de vista histórico-natural e lógico, quer dizer - científico -, a sua existência não se pode provar.


O APARECIMENTO DAS REPRESENTAÇÕES RELIGIOSAS


Mas há uma coisa diferente que se pode provar muito bem, a saber: como é que as representações religiosas apareceram na cabeça dos homens. Onde procurar as raízes destas ideias de um espírito supra-humano? Engels escreve sobre o assunto: «Desde o tempo muito remoto em que os homens, ainda em completa ignorância sobre a estrutura do seu próprio corpo e estimulados pelos fenómenos dos sonhos, passaram a representar o seu pensamento e a sua sensibilidade como uma actividade, não do seu corpo, mas de uma alma especial que habitava o corpo e o abandonava no momento da morte - desde esse tempo tiveram de começar a pensar na relação desta alma com o mundo exterior. Se se separava do corpo no momento da morte e se sobrevivia, então não havia motivo para conceber para ela ainda uma morte especial; deste modo surgiu a representação da sua imortalidade. [...] Por uma via em tudo semelhante, surgiram, pela personificação dos poderes da natureza, os primeiros deuses, os quais, na formação posterior das religiões, assumiram uma forma cada vez mais extraterrena, até que por fim, por um processo de abstracção - diria quase de destilação - que decorre naturalmente do desenvolvimento espiritual, [...] surgiu a representação do Deus exclusivo [...].»

Tudo isto figura no texto em que Engels define o problema fundamental da filosofia. E precisamente no ponto em que interrompemos a citação com os primeiros «[...]». E noutro passo (que também omitimos na primeira citação de Engels para dar maior relevo ao pensamento central) Engels diz que este problema fundamental «assume, em relação à Igreja, esta forma aguda: foi Deus que criou o mundo, ou o mundo existe eternamente?»

É evidente que Wetter leu tudo isto em Friedrich Engels. Mas deve ter-lhe parecido conveniente não entrar em investigações sobre a origem histórica das representações religiosas. E pareceu-lhe conveniente passar ainda outra coisa em claro: que na primeira parte do seu escrito Engels discute o grande filósofo alemão Hegel (1770-1831) e o crítica pela sua concepção idealista básica de que a natureza deve a sua existência a um espírito extraterreno. Uma das origens, entre outras, do marxismo foi a crítica destas concepções que se limitavam a traduzir para a linguagem da filosofia a suposição religiosa fundamental da criação divina do mundo. 

As investigações sobre a origem histórica das representações religiosas já são velhas. Mas atingiram o seu ponto mais significativo imediatamente antes do aparecimento do marxismo.


EXEMPLOS DE CRÍTICA MATERIALISTA DA RELIGIÃO


Já entre os filósofos da velha Grécia houve observações importantes sobre este problema. Heraclito (c. 530-470 a.n.e.), um dos pais espirituais da doutrina do desenvolvimento dialéctico, escreveu um dia: «Nenhum dos deuses fez, de tudo o que existe, o mundo, o mundo sempre igual a si mesmo; o mundo foi e é e será fogo que durará eternamente [...].» 

Quase ao mesmo tempo, o seu compatriota Xenofanes (c. 565-473 a. n. e.) chamou a atenção para o facto de que os homens criam os seus deuses à sua imagem e semelhança, e prosseguiu: «Ora se os bois e os cavalos e os leões tivessem mãos, e com as suas mãos pudessem pintar e construir obras como os homens, os cavalos pintariam imagens de deuses semelhantes a cavalos, os bois pintá-las-iam semelhantes aos bois, e criariam formas tais como as que eles próprios têm.»

O deus dos leões seria apenas um leão particularmente forte e poderoso, um predador particularmente grande e hábil! 

Alguns séculos depois, o grande filósofo e poeta materialista Lucretius Carus (que viveu em Roma entre 98 e 55 a.n.e.) descreveu como se forma no homem a representação de Deus: «Nada pode nascer do nada por criação divina. Pois o medo só domina todos os mortais porque estes vêem acontecer, no céu e na terra, muita coisa de que não conseguem, de modo nenhum, entender a razão. E por isso atribuem tais acontecimentos ao poder divino.»

A crítica da religião continuou a desenvolver-se e floresceu mesmo durante a Idade Média, quando a Igreja exercia um poder ilimitado e mandou queimar como «hereges» numerosos críticos. A luta contra a superstição religiosa só alcançou, contudo, novo ponto alto no período anterior à revolução burguesa nos diferentes países da Europa. Isto liga-se ao facto de a religião e a Igreja proporcionarem ao feudalismo o instrumento espiritual da repressão. «A religião é a arte de atordoar os homens com o fanatismo - escreveu então Holbach - para os impedir de compreenderem os males que descarregam sobre eles neste mundo os que os governam.»

Os pensadores que tomaram o partido da burguesia e da revolução burguesa - os filósofos «das Luzes», os materialistas ingleses e franceses - compreenderam, claramente, que a luta contra o feudalismo tinha de ser conjugada com a luta contra a Igreja e a religião. Por isso floresceu de novo, nesse tempo, a crítica da religião. 

Esta atingiu o seu nível mais elevado imediatamente antes do aparecimento do marxismo, na obra do grande filósofo materialista alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872). Feuerbach ensinou: o homem é uma unidade de corpo e espírito. A ideia de Deus nasceu quando esta unidade foi quebrada, quando o espírito foi tornado independente e depois elevado a ser supremo. Todas as qualidades do homem enquanto força fínita tornaram-se, pela simples negação da sua finitude, qualidades divinas. «O ser divino não é mais do que o ser humano [...] todas as definições do ser divino são, por isso, definições do ser humano.» 

Deus é a forma tornada independente e celestial do espírito humano. Diz Feuerbach: os homens não imaginam Deus em consequência de uma necessidade do seu pensamento de criar formas da superstição. Por outro lado, a religião também não deve a sua origem ao acaso. O que se reflecte na religião, na ideia de Deus, é a impotência do homem no mundo que o rodeia, impotência essa que o homem, com a sua elevação a Deus, procura «superar». 


AS RAÍZES DA RELIGIÃO

Marx e Engels, com base na crítica anterior da religião e do idealismo, desenvolveram-na e aprofundaram-na. Demonstraram que não são só o conhecimento deficiente das leis do desenvolvimento da natureza, o medo da natureza que daí resulta, e, modernamente, o conhecimento deficiente da imagem científica do mundo que dão origem às representações religiosas ou que as mantém vivas. São, sim, e muito mais, as relações na sociedade de classes antagónicas - nos nossos dias, as relações sociais capitalistas. A miséria social, as catástrofes sociais, a guerra e a exploração - apresentadas como calamidades do destino a que o homem não pode escapar - dão azo a que as religiões apareçam. Nestas condições, é muito difícil aos explorados e oprimidos descobrir as causas do mal que uns homens impõem aos outros homens e ganhar consciência das vias para combater esse mal. Pelo seu lado, os exploradores e opressores, que são a classe dominante, estão interessados em que todo este mecanismo continue a funcionar. Eles sabem que podem manipular a fé num espírito sobrenatural, seja ele Deus ou uma Ideia absoluta e eterna, de modo a justificarem as relações sociais existentes com a bênção da criação e da ordem divinas e a falsearem o desejo de libertação do povo transformando-o numa esperança de redenção depois da morte. É assim que as mais variadas condições se conjugam para que a fé num espírito supra-humano ganhe raízes sociais e espirituais profundas e continue ao serviço das classes exploradoras. 

O marxismo, de acordo com a ciência, devolve o espírito supra-humano e sobrenatural da religião à sua origem - o espírito humano. Parte do conhecimento de que a ciência não pode apresentar provas da existência de um espírito sobrenatural. O espírito e a consciência existem apenas na dependência de um órgão material, são uma característica deste órgão material - o cérebro humano. Por isso, o marxismo equipara o espírito «em si» ao espírito humano, e define o que existe fora deste espírito como natureza, como matéria. O marxismo, finalmente, mostra também as raízes sociais do aparecimento e da consolidação da ideia ilusória da existência de um espírito, ou de um Deus, supra-humano, sobrenatural e criador do mundo.




ABC do Marxismo-Leninismo -
EDITORIAL «AVANTE!», Lisboa
 
Para ler texto completo: http://www.dorl.pcp.pt/images/SocialismoCientifico/abc%20do%20marxismo%20b1.pdf


Mafarrico Vermelho

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