Marx e o programa comunista: Historicidade dos programas comunistas


Marx e o programa comunista
Historicidade dos programas comunistas
por José Barata Moura,
 

 
uma reflexão de Berthold Brecht, que nos pode fazer pensar:
"Na prática tem que se dar um passo de cada vez — a teoria tem de conter a marcha toda."
Caminhando, não esqueçamos nunca de destinar a marcha.
  


Para balizar o tema "Marx e o programa comunista", e antes de nos referirmos a alguns dos traços que fundam a sua especificidade, comecemos por evocar três observações, afinal bem conhecidas.

Primeira observação

Do mesmo modo que Marx não inventou a existência das classes e da sua luta, também o comunismo não foi uma invenção de Marx. Nem o termo, nem o núcleo genérico de ideias que poderiam ser agrupadas sob essa designação de "comunismo".

Desde os mitos gregos da "idade de oiro" até Platão, desde as comunidades judaicas dos essénios até às comunidades cristãs primitivas e à patrística, desde a literatura utópica de Thomas More a Campanela ou, depois já, em outros desenvolvimentos, com Morelly, Meslier, ou movimentos sociais em Inglaterra no Século XVII, (os "diggers", os "levellers"), para não falar nos estabelecimentos jesuítas no Paraguai — até aqueles que são mais conhecidos e que desenvolvem concepções de tipo socialista, como Saint Simon, Fourier, Lamennais, Weitling - nós encontramos, ao longo de séculos e com acentuações muito diferentes, pelo menos algumas ideias susceptíveis de formar duma maneira muito genérica aquilo a que poderíamos chamar o núcleo duro dum comunismo pré-marxista.
 
Entre essas ideias de sentido vago, difuso, mas ao mesmo tempo bastante preciso nalguns dos seus conteúdos, contam-se, por exemplo, a ideia da propriedade comum (muito particularmente da propriedade comum da terra); a ideia não apenas de igualdade, mas de uma igualdade real, ou seja, o intento de realizar a igualdade; e uma compreensão da sociedade fundamentalmente como uma comunidade.


Segunda observação

A cientificidade não é também uma reivindicação exclusiva de Marx. Se formos ver os textos do que nós chamamos o socialismo utópico, curiosamente, também eles reivindicam a ciência. Alguns exemplos. O inglês William Godwin, num texto de 1793 sobre a justiça política afirma que a política é uma ciência e que é através da ciência e de uma organização de alguma maneira científica que é possível estabelecer a justiça social. No caso de Saint Simon bastaria lembrar que uma das suas expressões mais características é a ideia de edificar um "sistema industrial e científico" — "industrial" tem aqui a ver, com o domínio do trabalho e da produção, em geral, e a cientificidade na sua organização e funcionamento aparece como uma característica desse sistema.


 
A expressão "comunismo científico" aparece num colaborador de Marx e Engels, Moses Hess, em 1843, em relação com a filosofia social francesa, que ao tempo começava a ganhar o povo segundo uma perspectiva de futuro que se desenha para além das doutrinas tanto de um "idealismo abstracto" como de um "comunismo abstracto".

Quando nos meados dos anos 70 do século 19 Marx e Engels se reclamam do "socialismo científico" pretendiam demarcar-se de todo um conjunto de concepções socialistas e comunistas que ao tempo tinham curso, mas na expressão "socialismo científico" há também uma tomada de posição quanto ao que se há-de entender por cientificidade — há, por parte de Marx e Engels, uma compreensão da ciência e da cientificidade que nada tem a ver com o seu conceito positivista e cientista.

Terceira observação.

Marx (diferentemente de Engels, que tem logo uma adesão entusiástica ao comunismo) nas suas primeiras referências ao comunismo tem um posicionamento reservado e de recomendação de estudo crítico. É certo quo Marx estava nessa altura (1842/43) militantemente empenhado no debate crítico sobre a situação alemã e não pretendia que esse empenhamento fosse desviado para o terreno da discussão abstracta de doutrinas que apareciam apenas como uma fraseologia mais ou menos empolgada, recentemente importada de França.

Outro aspecto importante do ponto de vista político é que, obviamente, os textos dos socialistas e comunistas continham um fortíssimo ataque à burguesia — que no contexto da França e Inglaterra era quem efectivamente estava no poder, enquanto na Alemanha se estava ainda numa fase de luta contra governos e políticas feudalizantes, e os sectores mais avançados da burguesia que na Alemanha se estava a desenvolver eram os inimigos principais desses governos.
 

Além disso é natural que Marx nessa altura ainda não tivesse pensado muito sobre a questão do comunismo e percebe-se que diga: vamos criticar, vamos estudar. Logo a partir de finais de 1843, mesmo antes da ida de Marx para Paris, nos seus cadernos de apontamentos o grosso do material corresponde a extractos de livros de História e também de textos importantes dos socialistas e comunistas, designadamente franceses.

Porquê esta orientação da pesquisa (em breve alargada à problemática económica)?porque Marx vai percebendo, e relativamente cedo, que o comunismo não pode ser, como ele diz, uma abstracção dogmática, isto é, uma ideia desligada da realidade e do desenvolvimento da própria realidade.
 

Numa carta de 1843 a Arnold Ruge aparece uma perspectiva central que Marx não vai mais abandonar: "nós não queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas queremos encontrar um mundo novo a partir da crítica do mundo velho".

A ideia do comunismo não é pois para Marx uma ideia dogmática, abstracta, desligada da realidade do próprio mundo que esta em desenvolvimento e transformação. A ideia fundamental do comunismo para Marx vai passar por este exame crítico do mundo velho para nele descobrir em germe e em desenvolvimento o mundo novo. E também, já neste período, há outra ideia extremamente importante, a de que a crítica só não chega, de que é necessário organizar as forças sociais susceptíveis de protagonizar essa transformação, de encabeçar esse movimento. Marx utiliza na altura a fórmula da associação, ou aliança, entre o proletariado e a filosofia, no sentido de ligar a teoria e a prática, a força social que materializa ideias e as ideias que são necessárias para determinar para onde, como, com e contra quem se quer ir.


O COMUNISMO PARA MARX
Correndo um risco de simplificação, podemos considerar três vectores em torno da especificidade do programa comunista de Marx.

Para Marx o comunismo é: um movimento real a conhecer, um programa de transformação a prosseguir, uma socialidade nova a configurar.

Para Marx, o comunismo é um programa, mas é também um processo de tomada a cargo, consciente e prática — revolucionante—do horizonte de possibilidades reais que a história prepara e projecta, como destinação material concreta da humanidade.

Movimento real

A expressão é de Marx e Engels, e aparece já formulada em "A ideologia alemã": "O comunismo não é para nós um estado [isto é, um estado de coisas] que deva ser fabricado [ isto é: produzido ou estabelecido], um ideal pelo qual a realidade tenha de regular-se [ajustar-se]. Chamamos comunismo ao movimento real que supera [que suprime] o estado actual. As condições deste movimento resultam do pressuposto actualmente existente".

Que aspectos são de assinalar nesta apresentação do comunismo feita por Marx e Engels em 1845/46?
Um traço fundamental, que Marx terá sempre presente: a ideia de que o comunismo não é a futuração de um dever-ser mais ou menos imaginário, mais ou menos congeminado por algum melhorador do mundo, como ele também diz no "Manifesto". O comunismo, para Marx, não é ficar fechado num gabinete a pensar: As coisas são assim, mas como é que deviam ser? Qual seria o estado ideal da sociedade?

É uma questão fundamental, em que Marx se demarca em relação a muitos caminhos do passado e também dessa época, que apareciam sob a designação de comunismo e de socialismo.

Outro aspecto importante: para Marx o comunismo também não é um protesto moral contra as misérias e as injustiças (o que não significa que não o seja também, mas não é só isso). Para Marx o comunismo é fundamentalmente uma tentativa de penetrar nas contradições do real (e é na sequência do aprofundar nessas contradições do real que vai aparacer a questão central da mais-valia e sobretudo a questão da apropriação privada da mais-valia sob a forma de lucro por parte dos detentores dos meios de produção). E esse penetrar na própria realidade faz-se para a conhecer e, sobretudo, para conhecer onde, como, com quem e em que sentido intervir. Ou seja, para Marx a relação entre o conhecer e a acção é uma relação decisiva. Não é uma relação de aplicação, é uma relação de perspectivação e de transformação material.

A procura do conhecimento — que não se reduz a uma acumulação de informação, mas inclui uma sondagem da estrutura que rege os processos e da dinâmica das contradições que os articulam — permite um enfoque decisivo dos combates políticos e da perspectiva em cujo horizonte se desenvolvem.

O esforço de teoria por parte dos comunistas irá, deste modo, possibilitar: que não apenas se proteste e se rejeite o modo de produção capitalista a partir da malignidade dos constatados efeitos que induz, mas que se venha a detectar o núcleo ou o segredo — estrutural — em que a sua dominação assenta: a apropriação privada pelo capital, sob a forma de lucro, de trabalho não pago; que não apenas se inventem por reflexão abstracta os objectivos e os meios da transformação, mas que se descubra, na própria dialéctica do existente, os caminhos susceptíveis de conduzir à passagem a, e à edificação de, um novo estado de coisas; que não apenas se cuide da formulação de princípios, rapidamente alçados a dogmatização intemporal, mas que a cada passo se não perca de vista que a sua aplicação prática " dependerá, em toda a parte e a todo o tempo, das circunstâncias historicamente vigentes ".

Programa de transformação

É outra ideia importante que recusa, por um lado, o automatismo da história, e também o voluntarismo da história. O automatismo — no sentido de que " não é preciso fazer nada, porque a história há-de chegar onde tem de chegar " O voluntarismo, com a ideia de que "basta-nos querer, e se tivermos fé, e sendo tão justo e certo o que nós queremos, a vontade pode mover montanhas ".

Portanto, nem automatismo nem voluntarismo, mas uma prática transformadora, esclarecida, isto é, materialmente fundamentada— é isto o que Marx e Engels procuram.

Conhecer é, sem dúvida, transformar a consciência que se tem das realidades. Mas o que materialmente decide é a transformação prática das realidades. E, para isso, num contexto histórico determinado, são precisas ideias, são precisos homens, é preciso um poder prático material que revolucione.

É de lembrar aqui uma ideia que todos conhecemos, mas que é fundamental e que no debate ideológico hoje em dia é importante não perder de vista: a de que são os homens que fazem a História, mas fazem-na em condições determinadas. E quais são essas condições, quais são essas determinações?

No programa de transformação de Marx podemos dizer que há duas questões importantes.

Uma é encontrar na própria sociedade as condições materiais da sua reconfiguração — a transformação da realidade tem de se fazer a partir do existente (não para o existente continuar a estar, mas para o existente ser outro, e ser qualitativamente outro). A transformação não é uma coisa que se acrescenta, que cai do céu, que se junta. Temos de conhecer muito bem como o existente está trabalhado por contradições para a partir daí sermos capazes de congregar os esforços e de ver como é possível avançar para transformar. Trata-se de uma reconfiguração revolucionária , mas a partir de um conhecimento profundo e de possibilidades reais que o próprio existente contém. Não é dizer: este é o quadro existente, é mau, e de miséria, de desgraça, outro, é o quadro da revolução, do comunismo, da teoria, que não tem nada a ver com esse. E depois, como se passa de um para o outro? Aplica-se um sobre o outro? Impõe-se um sobre o outro?

Outra ideia importante é a da transformação como correspondendo a esse trabalho dos homens na história, a esse movimento da própria história trabalhada pelos homens, e a de ver na classe operária, como Marx também diz, o poder organizado e a consciência do movimento. Em suma: são os homens que fazem a história, mas em condições determinadas, não é um processo automático, não basta só a vontade, é preciso a prática (acção) para transformar, senão não há transformação.

Mas a prática também supõe, também requer, também necessita organização. E essa organização precisa de ter uma expressão social, precisa de ter raízes em camadas da sociedade que possam estar interessadas (objectiva e subjectivamente) na transformação.

O programa comunista de Marx não se restringe à esfera económica, mas reconhece nela uma condição básica determinante. Não visa uma abolição de todas as relações de propriedade, mas, sim da propriedade burguesa. Intenta delinear perspectivas de luta, susceptíveis de encaminhar, no concreto dos desenvolvimentos, para o objectivo estrutural de revolucionamento, que não pode ser perdido de vista. Apela e trabalha num sentido de organização — política e social — daquelas forças que, tendo objectivamente " conquistado a Natureza", só podem verdadeiramente emancipar-se como humanidade , reconfigurando o mundo humanamente.

Daí todo o trabalho político, ideológico, cultural e organizativo de elevar uma massa "em si" agente e operosa ao "para si" consciente e prático, susceptível de enformar uma autodestinação consequente.

Quanto a este programa de transformação, merece referência ainda uma outra ideia muito importante que aparece no Manifesto pelos menos em duas vezes.

Diz Marx, referindo-se aos comunistas, que " no momento presente eles representam simultaneamente o futuro do movimento ". Isto é, a ideia de projecto, a ideia de que um movimento, uma prática revolucionária, pode jogar-se, pode decidir-se num momento, mas é um processo, e no comportamento do presente temos de salvaguardar, potenciando, aquilo que é o futuro do próprio movimento. Isto é muito importante até pelo que tem a ver com os oportunismos e outras formas de enviesamento.

Socialidade nova

Para Marx é necessário conhecer para transformar, organizar para intervir, e revolucionar para pôr de pé bases novas de desenvolvimento.

O comunismo de Marx encaminha-se para uma forma superior de produção. Trata-se, na realidade, de assumir e de orientar com consequência social o encaminhamento histórico para uma plataforma superior de materialização do viver: " O desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social é a tarefa e a justificação históricas do capital. Precisamente com isso, ele cria inconscientemente as condições materiais de uma forma superior de produção".

Não se trata, por conseguinte, de violentar a história, mas de intervir nela, esclarecida e praticamente. Sempre com a ideia de que não é chegar à história com uma imagem perfeita e acabada. A dinâmica de Marx nunca é uma dinâmica de violentar a história, mas sempre de trabalhar a história, num sentido de transformação efectiva.

Marx e Engels não perdem muitas páginas a imaginar o que seria a sociedade comunista, ao contrário de outras literaturas sobre estas matérias, que tinham até quase uma especificação do menu ou horário ao longo do dia mais ou menos ensaiada. Mas alguns traços essenciais são claramente apontados.

Em primeiro lugar, uma produção não virada exclusivamente para o lucro, e sim colocada ao serviço de uma satisfação generalizada e historicamente enriquecida de efectivas necessidades sociais. Repare-se: necessidades enriquecidas — isto é, ter em conta que com o desenvolvimento da Civilização há também um enriquecimento das necessidades e ao mesmo tempo um alargamento das capacidades. Numa história em desenvolvimento há necessidades em desenvolvimento também. E este enriquecimento das necessidades deve ser entendido não apenas como a sua democratização, pelo alargamento a toda a sociedade, pela satisfação universal das necessidades, mas também como um enriquecimento do seu conteúdo, um enriquecimento da qualidade do próprio ser humano.

Outras ideias muito claras, que se apontam apenas:

- desformalizar a democracia, isto é, que a democracia não seja apenas um ritual mais ou menos formal;

- a ciência e a tecnologia como factor de emancipação (em muitos textos de Marx e em "O Capital" fala-se também desta questão);

- não hipotecar a exploração da natureza mas gerir e transmitir a Terra enriquecidamente às gerações vindouras (há no Livro III de "O Capital" uma página extremamente interessante com posições de fundo sobre a Ecologia);

- e mais — relativamente às questões do ócio, do tempo livre, há o aspecto interessante de não o ver só como um tempo de lazer socializado, apresentando algumas ideias interessantes como esta: considerar o tempo livre como um tempo de repouso e também como um tempo disponível para outras actividades, num sentido humanamente enriquecedor. Isto é uma questão fundamental da cultura e provavelmente por isso a noção de democracia cultural cada vez faça mais sentido.

Outro ponto por vezes esquecido quando se associa a questão do comunismo à questão da nova socialidade (no sentido das próprias relações sociais) — é que essa nova socialidade, pode também ser olhada de outra maneira, isto é, uma nova socialidade é também uma nova individualidade — e Marx fala disso.

Não é fazer do colectivo uma instância pairante, acima dos viveres singularizados dos homens e das mulheres que, nos seus relacionamentos diversificados e diferentes formam e protagonizam a sociedade. É uma colectividade efectivamente enriquecida, porque houve um enriquecimento da individualidade e das relações humanas, também nesse prisma da individualidade. E do ponto de vista marxista, é fundamental não contrapor socialidade e individualidade, porque efectivamente não estão separadas.

Última nota neste ponto. O comunismo para Marx não é o fim da história. Como ele próprio diz, é o começo da história da liberdade. Isto é muitas vezes apresentado de maneira completamente diferente, como se o comunismo fosse o fim da história, o paraíso, quando a maneira que Marx e Engels têm de falar dele, nunca é como o fim da história, mas como o começo duma outra história, desenvolvida em bases qualitativamente superiores, que seria a história da liberdade.



Fonte: PCP em http://www.dorl.pcp.pt/images/anexospdf/divsoccient/marxeoprogramacomunista.pdf


Mafarrico Vermelho

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