A restauração do modo de produção capitalista na União Soviética

A restauração do modo de produção capitalista na União Soviética 

publicado originalmente em Rapporti Sociali  n.º 8, em Novembro de 1990



A tese de que os revisionistas modernos restauraram, na União Soviética, durante os anos 50 (sob a direcção de Khruchov), o modo de produção capitalista foi mantida nos anos 60 e 70 por grupos marxistas-leninistas, no contexto da denúncia da linha de reacção anticomunista e de restauração capitalista adoptada pelos revisionistas modernos, que dirigiam a URSS e grande parte dos países do Leste da Europa. Esses grupos consideravam que a União Soviética era um país socialcapitalista e socialimperialista, ou seja, socialista nos discursos dos dirigentes e nas declarações de intenções que faziam para defender as suas iniciativas ante as massas, mas capitalista e imperialista «de facto».

Consideramos que esta tese só é justa no sentido em que a linha seguida pelos revisionistas modernos, embora encoberta com palavras comunistas», levava na realidade à restauração do capitalismo e tornaria a URSS num país imperialista. Não obstante, esta tese é errónea ao pretender que esse resultado já tinha sido alcançado.
Consideramos o seguinte:

1. Que o revisionismo moderno foi uma tentativa de restaurar gradual e pacificamente o capitalismo;


2. Que essa tentativa, levada a cabo nalguns países socialistas, durante quase 40 anos, num contexto favorável à restauração caracterizado pela recuperação da acumulação de capital nos países imperialistas, levou à paralisia da sociedade socialista, mas não à restauração do capitalismo;

3. Que este fracasso coloca na ordem do dia um confronto de classes, que tem como desenlaces possíveis a recuperação da transição para o comunismo ou a restauração violenta do capitalismo. Ambos os desenlaces excluem uma «conversão dos países socialistas à sociedade de consumo ou de bem-estar dos países imperialistas».

A questão da restauração do capitalismo não é apenas uma questão de nome: não se trata de discutir o nome que havemos de dar ao sistema económico da União Soviética. Esta questão tem uma importância prática e, apenas por isso, também teórica. Com efeito, trata-se de compreender quais foram as contradições que determinaram a dinâmica da sociedade soviética, a partir dos anos 50, quais são as que a determinam actualmente, quais são, pois, as suas correntes principais, os desenlaces para que se encaminha a sociedade soviética, os objectivos reais das forças políticas que
hoje operam nela2 e qual é o papel que a União Soviética tem e terá no desenvolvimento da crise de sobreprodução de capital e no movimento revolucionário mundial.

O modo de produção capitalista é um fenómeno histórico desenvolvido desde o século XV, a partir da Europa Ocidental. As suas características essenciais e universais (isto é, comuns a todos os países) e também específicas (por se tratar de um modo de produção diferentes dos outros) foram expostas por Marx na sua obra  O Capital. Todos os que queiram compreender o movimento económico e político das sociedades actuais devem rejeitar tanto a tendência corrente da cultura burguesa de transpor para sociedade capitalista categorias e nomes correspondentes a outra realidade, com base em semelhanças superficiais e de pouco peso, de modo a impedir a sua compreensão, como, consequentemente, a tendência para esvaziá-las de qualquer conteúdo de importância prática
.3

Para se poder resolver a questão da restauração do modo de produção capitalista na URSS, que teria sido levada a cabo nos anos 50 pelos revisionistas modernos, devemos partir da natureza da estrutura económica do capitalismo na época ou fase imperialista.

A fase imperialista do capitalismo caracteriza-se pela contradição entre a propriedade individual das forças produtivas (que é um elemento constitutivo essencial do capitalismo) e o carácter colectivo alcançado por essas forças produtivas.4 Nas sociedades imperialistas, o elemento essencial do capitalismo (a propriedade individual das forças produtivas) encontra a sua mediação5 com o carácter colectivo alcançado pelas forças produtivas no capital colectivo, nas associações de capitalistas ou sociedades de capital e nas formas antitéticas da unidade social. Daqui surgem os monopólios, o capital financeiro, a partilha do mundo entre grupos e Estados imperialistas, as empresas multinacionais, as políticas económicas, o capitalismo de Estado, etc.


A propriedade social capitalista colectiva das forças produtivas, longe de eliminar a propriedade capitalista individual, abre-lhe um novo e vasto campo de acção. É certo que as principais estruturas produtivas6 se converteram, nos países imperialistas, em propriedade directa de associações de capitalistas (sociedades por acções, entidades económicas públicas, fundos de seguros e outros organismos do mesmo tipo). Mas também é certo que o capitalista individual, excluído da propriedade directa das estruturas produtivas devido ao seu carácter social, aparece como proprietário individual de uma quota do seu valor e faz valer dessa forma os direitos, que já não pode fazer valer completa e directamente no que respeita às estruturas produtivas, apesar do carácter social que estas alcançaram.

Se, por exemplo, considerarmos as recentes vicissitudes da Societé Générale da Bélgica, da Montedison, da Parmalat, da Enron, do Credit Lyonnais , etc. (grandes associações de capitalistas ou capitalistas colectivos) surge imediatamente o campo de acção reservado a capitalistas individuais como De Benedetti e Gardini. Não se pode compreender os negócios em que se misturam as grandes sociedades multinacionais (General Motors, Standard Oil of N.Y., Ford Motors, Shell, General Electric , IBM, etc.) se ignorarmos os laços destas com os seus grandes accionistas, com os que aspiram ao seu controlo ( raiders), com os aventureiros da finança, com a multidão de pequenos accionistas e aforradores, com os capitalistas individuais, os seus clientes e fornecedores, até descermos ao mundo variado da pequena produção mercantil individual em que se movimentam milhões de indivíduos, todos em busca da «fortuna». Não se pode compreender minimamente o movimento das estruturas e instituições típicas do «capital colectivo», dos «capitalistas associados» se ignorarmos o capital individual e a produção mercantil.

O imperialismo, o monopólio, o capital financeiro, o capitalismo de Estado e o capitalismo burocrático apoiam-se na base ampla do capitalismo de velho tipo, na propriedade individual das forças produtivas, nas pequenas e médias empresas capitalistas, nas relações mercantis, nas relações monetárias e nas relações de valor.


Na sociedade burguesa, o monopólio7 é uma mediação entre a propriedade individual das forças produtivas e o seu carácter colectivo. O monopólio surge como
desenvolvimento e alargamento da produção mercantil, da qual vive: toda a vantagem que um capitalista retira do preço e das condições de monopólio tem a sua origem no quadro não-monopolista em que opera o monopólio. Onde não há livre concorrência não pode haver monopólio capitalista, da mesma maneira que não pode haver ilhas sem mar.


Na sociedade burguesa, o capital financeiro surge e desenvolve-se sob a forma de associações de capitalistas individuais e o dinheiro assume a forma de títulos de crédito como desenvolvimento da sua forma em ouro. Esta última continua a ser na sociedade imperialista a amarra mais segura do poder pessoal de cada capitalista, à qual retorna cada vez que deixam de existir as condições que levaram o dinheiro a mudar de forma.


Na sociedade burguesa, o colonialismo, a sujeição e exploração dos países mais atrasados surgem e desenvolvem-se como resultado ou instrumento do empenhamento dos capitalistas em manter tão elevada quanto possível a margem de lucro das fracções individuais de capital.


O capitalismo de Estado surge e desenvolve-se como intervenção do Estado e utilização dos seus recursos políticos para manter uma margem elevada de lucro dos capitais privados e dos capitalistas individuais e debelar as contradições entre eles.


O capitalismo burocrático (ou capitalismo burocrático de Estado) é o tipo de capitalismo que o imperialismo faz surgir nos países atrasados, semifeudais e semicoloniais, combinando os grupos imperialistas, os grandes proprietários de terras e  os grandes banqueiros com o poder estatal.8

Portanto, não tem sentido falar de imperialismo, monopólio, capital financeiro, capitalismo de Estado e capitalismo burocrático quando nos referimos a uma sociedade em que os capitalistas individuais, os capitalistas privados e a produção mercantil não constituem o tecido básico da actividade económica da sociedade. Todas estas teses foram expostas por Lénine no VIII Congresso do PCR(b) no seu Relatório sobre o Programa do Partido , de 19 de Março de 1919, criticando as teses de Bukhárine que afirmava que o imperialismo era um novo modo de produção que sucedia ao capitalismo.

Lénine concluía a sua crítica dizendo: « O imperialismo puro, sem a base fundamental do capitalismo, nunca existiu, não existe em parte alguma e nunca existirá. Isso é uma generalização errada de tudo quanto se disse acerca dos consórcios, dos cartéis, dos trusts, do capitalismo financeiro, quando o capitalismo financeiro era descrito como se sob ele não houvesse nenhuma das bases do velho capitalismo(…)  Se Marx dizia da manufactura que ela era uma superstrutura da pequena produção em massa, o imperialismo e o capitalismo financeiro são superstruturas do velho capitalismo. Se se destrói a parte superior, aparece o velho capitalismo. Defender o ponto de vista de que existe um imperialismo integral, sem o velho capitalismo, é tomar os desejos por realidade .»
Texto publicado em parte pelo O Mafarrico Vermelho


Leia o texto completo em http://www.hist-socialismo.net/




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