Os efeitos da guerra suja

Mãe chora morte de filho no Iraque martirizado.
Os efeitos da guerra suja

Intervenção na sessão do Tribunal-Iraque em Guimarães
 
Haifa Zangana
Fonte: TMI


Em Dezembro 2011, o Presidente dos EUA, Barak Obama, anunciou a retirada das forças militares do Iraque. A retirada parcial deixa uma destruição de infraestruturas e da vida humana com efeitos de longo prazo. Vou hoje falar-vos sobre a destruição humana que continua no Iraque.

 
A “guerra suja” engloba duas definições. 

 
Uma, é o “desaparecimento forçado” daqueles que sempre se opuseram a um regime brutal, como na Argentina (1976-1983), quando a junta militar, naquele que auto-intitulou “Processo de Reorganização Nacional”, levou a cabo uma repressão sistemática, dos opositores. É também o que acontece hoje no Baluchistão (Paquistão), onde corpos mutilados e visivelmente torturados continuam a aparecer, entre eles juristas, estudantes e trabalhadores agrícolas. Isto é descrito como a guerra suja secreta do Paquistão.

 
A outra, é a utilização de armas proibidas ou armas de destruição em massa. São apresentadas pelos média e definidas por alguns estados como o tipo de armas usadas pelos grupos ou organizações “terroristas” (frequentemente “islâmicas”), para não mencionar o terrorismo de estado aplicado no Iraque desde a invasão e a ocupação em 2003, a acrescentar ao seu anterior uso em 1991 durante a primeira guerra do Golfo.

 
Qualquer destas definições se aplica ao Iraque.


Desaparecimentos forçados e ataques a civis

 

O número de iraquianos mortos desde 2003 ultrapassou um milhão. Investigadores britânicos e suíços, com base nos dados disponibilizados pelo grupo de direitos humanos 

 
Iraq Body Count (IBC), que apresenta valores mais baixos que outros estudos, têm vindo a analisar as mortes de civis no Iraque entre Março 2003 e Março 2008 constatando que a maioria tem sido consequência de armas indiscriminadas, como explosivos e bombas aéreas.

Áreas densamente povoadas, como o Arab Jebour (um dos arredores de Bagdad) foram sujeitas a intensos bombardeios em Janeiro de 2008 quando 50 mil quilos de explosivos foram lançados sobre a povoação em 10 dias. Toda a zona foi completamente apagada do mapa. Os aldeões tiveram que desenterrar os corpos dos escombros com as próprias mãos. As vítimas civis foram frequentemente equiparadas a “terroristas” ou consideradas “danos colaterais” e os crimes contra civis como “acidentais”, resultado de “fogo amigo” ou de uma “escalada da violência”.

De acordo com um “índice de guerra suja” estabelecido pelos investigadores para medir a proporção de mulheres e crianças entre os civis mortos pela combinação de todos os tipos de armas e por pequenas armas de fogo, a responsabilidade pela guerra suja das forças da coligação foi muito maior do que a das forças anti-coligação, afirmam os investigadores.

O desaparecimento de civis aumentou de 375 mil em 2003 para um milhão em 2008 de acordo com a Cruz Vermelha internacional. Raptos, tortura e assassinato tornaram-se norma durante a ocupação. 

 
Atingiram o seu valor mais elevado depois da nomeação de Negroponte como embaixador dos EUA no Iraque. Ele já tinha servido em São Salvador em conjunto com James Steele, um dos mais experientes militares dos EUA em lidar com revoltas. Steele apurou a sua táctica ao liderar uma missão de forças especiais em São Salvador durante a brutal guerra civil do país nos anos de 1980. Tendo sido um elemento-chave no conflito São Salvadorenho, Steele sabe como organizar uma campanha contra os insurrectos (aparentemente) conduzida pelas autoridades locais. 

 
Não se trata do único norte-americano no Iraque com esta experiência: o conselheiro principal dos EUA no Ministério do Interior, que detém a chefia operacional dos comandos, é Steve Casteel, um ex-alto funcionário da Drug Enforcement Administration (Administração de Combate às Drogas) que passou boa parte da sua vida profissional nas guerras da droga na América Latina.

 
Académicos, cientistas, pilotos, ex-oficiais do exército, escritores, artistas, jornalistas e activistas dos direitos humanos têm sido alvo de milícias e esquadrões da morte.

Nem mesmo parlamentares que fazem parte do processo político em curso foram poupados.Harith al-Obaidi, líder da Frente do Acordo Iraquiano, a maior bancada sunita no Parlamento Iraquiano, foi morto a tiro junto a uma mesquita depois de ter proferido uma intervenção em que condenou o governo de Maliki por abuso de direitos humanos, em Junho de 2009.

Independentes que participaram, tal como tantos outros, em manifestações pacíficas da primavera árabe foram presos, torturados e, como é agora usual sob o regime de Maliki, violados. A 8 de Setembro de 2011, Hadi Al Mahdi, jornalista, realizador e dramaturgo, abertamente crítico da corrupção governamental e da desigualdade no Iraque, foi encontrado morto em sua casa, com dois tiros na cabeça. Já antes tinha sido detido e espancado por causa das suas críticas mordazes ao governo iraquiano. “A morte de Hadi al-Mahdi demonstra, infelizmente, que o jornalismo no Iraque continua a ser uma profissão mortal”, disse Joe Stork, vice-director para o Médio Oriente da associaçãoHuman Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos). “Depois de mais de seis anos de governo democrático, os iraquianos que exprimam publicamente os seus pontos de vista fazem-no sob grande perigo.”

 
A dependência das forças dos EUA em relação a empresas de segurança privada (EPS) tem tido como efeito várias assassinatos. Estes assassinatos foram perpetrados sem que tivessem sido apuradas responsabilidades. Até há pouco, tal como as tropas dos EUA, as EPS gozavam de imunidade no sistema legal iraquiano de acordo com a Order 17 da Autoridade Provisória da Coligação, bem como de boa parte do sistema legal norte-americano, em virtude das cláusulas altamente protectores que regem os seus contratos.

O exército e os seguranças participaram muitas vezes em acções conjuntas de assassinatos ou de ferimento de civis em incidentes apresentados como resultado de “escalada de violência” ou de “situações de patrulhamento das tropas de ocupação, em postos de controlo ou em escolta de comboios de veículos”. Segundo o senador Patrick Leahy, “famílias inteiras [são] mortas a tiro, ou apenas as crianças mais pequenas são mantidas vivas enquanto os pais são crivados de balas nos bancos da frente [dos carros]”.

Sem qualquer respeito pela vida humana, o soldado e o segurança abrem fogo sobre homens, mulheres e crianças que considerem como ameaças. De acordo com um soldado dos EUA que participou numa matança: “Abrimos fogo sobre qualquer coisa. Não é preciso que estejam armados. Estávamos só a somar pontos”. Para ele, todos os iraquianos, pouco importa o género, “não são pessoas, sabe. É como se não fossem humanos.”


Os efeitos a longo prazo do uso, em áreas habitadas, de armas proibidas internacionalmente


 
Desde o primeiro dia da guerra no Iraque que os EUA rejeitaram descontaminar o território do país do urânio empobrecido (depleted uranium – DU). 

 
Os EUA afirmam não ter planos para remover quaisquer destroços de armas de urânio empobrecido que utilizaram no Iraque. Afirmam que não é necessária qualquer descontaminação porque foi demonstrado que o urânio empobrecido não tem efeitos de longo prazo. Dizem que um estudo de 1990 revela que os riscos para a saúde das populações ou dos antigos combatentes não são reais.

Mas, um estudo das Nações Unidas descobriu que passados sete anos sobre a utilização de urânio empobrecido, o ar e a água apresentavam sinais de contaminação.

 
Quando uma arma com urânio empobrecido atinge um objecto sólido, como um tanque,atravessa-o e depois desfaz-se em fogo numa nuvem de vapor. Transforma-se numa poeira venenosa e radioactiva. Tanto os EUA como o Reino Unido sabem que a poeira pode ser perigosa quando inalada, embora afirmem que o perigo seja de curta duração, localizado e muito mais capaz de provocar um envenenamento químico do que radioactivo.

 
Estima-se que foram largadas 320 a 800 toneladas de urânio empobrecido quando da retirada do exército iraquiano do Kuwait a norte da cidade de Bassorá, em 1991.

Os pilotos norte-americanos que bombardearam com armas de urânio empobrecido os indefesos soldados iraquianos que já se tinham rendido exclamavam:

“Torrámo-los…. fizemos jackpot….perus a voarem….alvos fáceis… Não há igual. Foi o maior 4 de Julho jamais visto, ver aqueles tanques atingidos bum, e a poeira a sair de dentro deles… tornam-se brancos. É maravilhoso.” (citado pelos jornais Los Angeles Times e Washington Post, ambos de 27 de Fevereiro de 1991).

Durante 2003, a aviação norte-americana transportando armas de urânio empobrecido bombardeou repetidamente edifícios altos no centro de Bagdad. Bombardeamento intenso, “em tapete”, e o uso frequente de mísseis e de balas de urânio empobrecido em áreas densamente ocupadas ocorreram no Iraque. Os EUA e o Reino Unido utilizaram cerca de 2 mil toneladas destas munições durante a guerra do Iraque.

No entanto, o Reino Unido só admitiu o uso de urânio empobrecido em Julho 2010. “As forças do Reino Unido utilizaram cerca de 1,9 toneladas de munições de urânio empobrecido na guerra do Iraque em 2003”, respondeu por escrito o secretário da Defesa Liam Fox à Câmara dos Comuns no dia 22 de Julho.

Mais de 40 locais por todo o Iraque estão contaminados com altos níveis de radiação e dioxinas. E, enquanto Fox referiu que o Ministério da Defesa facultou as coordenadas dos alvos atacados com armas de urânio empobrecido ao Programa Ambiental das Nações Unidas, os EUA continuam a recusar-se a declarar os tipos, locais e quantidade de armas utilizadas.

 
Estudos recentes de eminentes cientistas confirmam os efeitos de longo prazo do urânio empobrecido e do fósforo branco que foram utilizados durante o bárbaro ataque dos EUA à cidade de Faluja em 2004. Tal como o crescimento das taxas de cancro e de malformações congénitas nos últimos cinco anos em comunidades próximas das cidades de Najaf e Bassorá.

 

30 de Agosto 2005
Depois de analisar os registos dos hospitais públicos em todo o país, investigadores da Universidade de Bagdad têm demonstrado que o sobejamente documentado crescimento de malformações na região sul do país alastrou até à capital, Bagdad. Desde antes da guerra o crescimento foi de 20%. Os médicos culpam a poluição das águas subterrâneas contaminadas com radioactividade do urânio empobrecido utilizado nas duas guerras do Golfo. O tipo de malformações encontradas em recém-nascidos é caracterizado pela existência de múltiplos dedos, cabeças anormalmente grandes, lábios leporinos ou ausências de membros superiores e inferiores. Altos níveis de malformações congénitas têm sido relatados na região sul do Iraque desde meados dos anos 90. Este é o primeiro relatório que refere a mesma situação a alastrar até à capital. Depois da primeira guerra do Golfo, Bassorá foi particularmente atingida; hoje o fenómeno alastra para norte, de Najaf para Bagdad.

22 de Janeiro 2010
“Foram encontrados até hoje 42 locais declarados de alto risco por urânio e toxinas”. O estudo conjunto dos ministérios do Ambiente, da Saúde e da Ciência descobriu que as sucatas de metal dentro e nos arredores de Bagdad e Bassorá contêm elevados níveis de radiação ionizante, que se julga ser uma consequência do urânio empobrecido usado nas munições durante a primeira guerra do Golfo e desde a invasão de 2003. O jornal The Guardian relatou em Novembro a indignação de médicos locais acerca do aumento em massa de malformações congénitas na cidade, em particular de defeitos do tubo neural que afecta a medula e o cérebro dos recém-nascidos.

3 de Julho 2010
Resultados de um estudo epidemiológico sobre a população local foram publicados nesta data no International Journal of Environmental Studies and Public Health (IJERPH) com sede em Basileia, na Suíça. Demonstram que, nos cinco anos que se seguiram aos ataques de 2004pelas forças lideradas pelos EUA, em Faluja aumentou quatro vezes o número de cancros, leucemias e mortalidade infantil e que os problemas genéticos são significativamente mais elevados do que aqueles que se revelaram nos sobreviventes dos bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui em 1945. Foi particularmente notado um crescimento de 12 vezes no cancro infantil entre os 0 e os 14 anos. O aumento dos cancros e da leucemia deram-se em gente mais nova do que seria de esperar. A mortalidade infantil revelou-se ser de 80 por 1000 nascimentos, a comparar com os valores de 19 no Egipto, 17 na Jordânia e 9.7 no Kuwait.

Janeiro 2011
Um estudo publicado no mesmo International Journal of Environmental Studies and Public Health demonstra que as malformações são 11 vezes superiores às taxas normais e cresceram para números sem precedentes no primeiro semestre de 2010 – um período que não tinha estado em análise nos primeiros relatórios. O fósforo branco foi lançado pelo exército dos EUA em Novembro 2004 em Faluja para preparar a ofensiva contra a resistência. Os autores relatam que no último estudo sobre Faluja foram detectadas 55 famílias com recém-nascidos com malformações graves, entre Maio e Agosto. O estudo foi conduzido pela Dra Samira Abdul Ghani, uma pediatra no hospital central de Faluja. Em Maio, 15% dos 547 bebés nascidos tinha malformações graves. No mesmo período, 11% dos bebés nasceram com menos de 30 semanas e 14% dos fetos abortaram espontaneamente. O estudo centra-se nos metais como potenciais condutores do contaminante. Sugere uma acumulação de toxinas que causa danos graves e potencialmente irreversíveis nos corpos da população local.

Os militares dos EUA negam há muito qualquer responsabilidade sobre possíveis contaminantes deixados na cidade ou em qualquer lugar no Iraque.


Conclusão

 
Perita em radiações, a Dra Leuren Moret descreve o urânio empobrecido como um “assassino silencioso que não vai desaparecer” por causa dos seus efeitos profundos e devastadores. “O uso pelos EUA de armamento com urânio empobrecido é ilegal à luz dos tratados, convenções ou acordos internacionais, bem como sob a lei militar dos EUA. O urânio empobrecido que já contaminou vastas regiões e vai continuar a contaminar outras partes do mundo ao longo do tempo é, com efeito, um assunto mundial e uma questão internacional.” (Moret, 16 de Abril 2011).

 
Através dos esforços continuados de Karen Parker (uma jurista empenhada e activista de direitos humanos),uma subcomissão da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidasdeterminou, em 1996, que o urânio empobrecido é uma arma de destruição maciça que não pode ser utilizada. Quer Moret quer Parker integram o conselho consultivo do Tribunal sobre o Iraque de Bruxelas.

São inúmeros e continuados os esforços para proibir o uso de urânio empobrecido e outros materiais dadas as suas “permanentes contaminação radioactiva e a destruição ambiental que resultam num grande crescimento de cancros e malformações congénitas depois dos ataques. Estes irão aumentar ainda ao longo do tempo e com efeitos (ainda) desconhecidos em consequência da exposição crónica, aumentando os níveis internos de radiação da poeira de urânio empobrecido e os efeitos genéticos permanentes transmitidos às gerações futuras.”

 
Para proibir o seu uso – tal como o de outras armas nucleares ou novas gerações de armas como o fósforo branco ou o napalm – é importante entender os motivos estratégicos políticos e económicos que estão por detrás da sua utilização. Os EUA utilizaram-nos até hoje em quatro países; a Líbia foi o último.

 
Estar atento e alerta e tomar posição é fundamental e é por isso que o vosso, o nosso, trabalho no Tribunal é extremamente importante.


Texto original em http://tribunaliraque.info/pagina/artigos/depoimentos.html?artigo=1055


O Mafarrico Vermelho

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